terça-feira, 20 de julho de 2010

Meio dia céu azul

Meu pai comia com a faca virada assim, ó. Pra fora, falou Geremias, era preparado. Seu pai era seu matador predileto. Sujo, com dois incisivos amarelos em cima e dois caninos em baixo, uma bota militar em um pé, um moleton cinza e um tênis de corrida no outro pé. Almoçava hoje ali, foi onde lhe ofereceram primeiro. Com os olhos, assim ganhou nos últimos dez anos o prato que garfava. Ouvira aquela frase da boca do pai com os olhos em seus olhos e sempre à repetia. O bar onde estava era sempre sujo, mesmo com água e sabão em pó e muita espuma cinza. Tinha um metro entre o balcão e a entrada, formava um L que dava no menor banheiro de todo o Rio de Janeiro. Geremias mastigava e falava aos tropeços na comida.
Cala boca, falou Julho Santana que sentado ao lado, não queria que continuasse a chover saliva em cima de seu prato. De camisa azul aberta Julho Santana sentia a brisa ocasional tocar em sua barriga lisa e bronzeada, passou a mão onde o vento tocara e sentia entre sua mão e sua pele. O sol ainda chegaria ao balcão, mas só às 14 horas. Tinha 57 anos, rabo de cavalo e barba branca, era aposentado e quem pagava o prato de Geremias.
Um dia o veado do meu chefe descobriu que a gente tinha pego um dinheiro, esquecido. Besteira. Tinha 45 quando foi demitido. Passou a sair para o balcão que encostava e a voltar para o apartamento com entrada a 16 passos dali. Dias depois sua mulher o deixou, roxa de um olho com um filho nos braços. Bestei... murmurou, enquanto comia carne assada com arroz feijão e macarrão. Assim ó, fazia assim. Geremias segurava a faca em direção ao seu pescoço, Julho Santana procurava algo limpo em seu prato. Lembrou de seu filho segurando uma espada de lâmina vermelha e cabo branco, comprada por ele no natal. Um dia, o moleque crescido, passou na casa dele para acertar as contas da mãe e da vida sozinho, gritou, agitou os braços. “Porra já tenho idade, né?”pegou a faca de cozinha e colocou no olho do moleque. Ia matar não fosse pelo porteiro, garantiu sempre. Nunca mais falou com o filho. Aquele morreu pra mim.
Agora apreciava sua garrafa de cerveja suada, quando à tocava podia sentir o gelo da casaca de onde veio. Imaginava o som da cerveja sendo derramada em seu copo, ar sendo empurrado copo acima e a chuva fraca da espuma em erupção. Ontem, se lembrou, queria ser um grande mecânico se tivesse graxa nas mãos e um macacão, como o homem que observara chegar ao balcão. Ia passar o dia todo sujo só consertando os carros, falou mentalmente sem emitir um único som mas confirmou com um “hum”. Respirava lento, pesado como um porco deitado.
Empurrou o prato na direção de Geremias que olhou em seus olhos e perguntou com eles. Julho Santana grunhiu virou-se para o outro lado e observou o triângulo formado pelo sol, sua ponta já enconstava no metal que protegia a borda do balcão de vidro. Lá fora o céu azul claro espremido entre dois prédios bejes contrastava com o cinza do Santana 89 com suas seis janelas embaçadas. Não pensou em nada neste momento, olhou. Uma risada aguda seguida de sotaques nordestinos. O gelado do copo o despertou, tomou uma talagada, se serviu e assistiu a Geremias contar a história do pai para um grupo que ria. Uma mão tocou seu ombro. Vai deixar passar esse? perguntou Pezinho que, de camiseta branca, pele morena, cordão e seus 60 anos, anunciou, faltam 10 minutos para às 14 horas.
Não sonhei com porra nenhuma, Julho Santana lembrou, só escuridão roxa. “Vaca!” Geremias cuspiu pelo buraco entre os quatro obeliscos brancos de sua boca, “joga na vaca!” Ao ouviar aquilo enrigeceu o braço que segurava o copo e disse “Vai se fuder! Vaca é o caralho. Eu jogo é no leão! Jogo também na cobra, e no burro por você.” Entregou o bilhete e chamou em direção ao balcão “Branca! Baixa uma faz favor.” Uma mosca pousou no seu cotovelo. Olhou para faca virada no prato, como o pai de Geremias fazia. Imaginou o quanto o tempo acordado andando e o quanto ainda se levantaria e de quantas cadeiras, achou que demoraria, a vida ainda levaria muito tempo, ficou cansado não era como antigamente. Nunca foi como lhe haviam contado na infância. Passou o ante-braço muito acima da mosca, porra de mosca. Maneco, dono do bar a 40 anos, chegou a sua frente e encheu um copo de cachaça, O quê?, perguntou. Essa merda de..., foi interrompido por Geremias com um abraço fedido seguido de um, brigada doutor. Um sorriso foi dado. Sol chegou ao balcão e refletia brilho em seus olhos. Pezinho sentado de sua carteira de escola pública gritou “Bola fora Julho.” Julho Santana tomou a cachaça em um só gole, porra, falou enquanto sentia os cavalos ardentes descendo até o curral do estômago. É assim mesmo, pensou, e perguntou a Maneco, não to certo? a vida é assim mesmo, se ganha e se perde. Maneco com as duas mãos apoiadas no balcão sorriu sem mostrar os dentes.

Hermano Beaumont